domingo, 29 de agosto de 2010

TV Pública: independente do Estado e do mercado, a serviço do conhecimento e da cidadania

Título original: A serviço do conhecimento e do espírito crítico do telespectador

Publicado originalmente pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)

Ana Rita Marini

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A televisão pública ideal para o Brasil deve ser independente economicamente, tanto do Estado, quanto da publicidade, e garantir sua existência independentemente dos humores dos governantes do momento. Essa TV precisa conquistar seu espaço e competir – sem obsessão por audiências – com as emissoras comerciais e conseguir tirar a população da condição de refém do modelo dominado pelo marketing. Assim é a televisão pública idealizada por Laurindo Leal Filho (Lalo), cientista social, doutor em Comunicação, apresentador na TV Brasil do programa "Ver TV", entrevistado deste e-Fórum.

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Para Lalo, o entretenimento deve ser um dos pilares da programação na televisão pública, que precisa ainda informar e capacitar o telespectador para ter suas próprias ideias. "O dono da verdade deve ser o público e não a emissora", afirma. Leia a seguir.

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e-Fórum - Como o senhor define "TV pública", considerando a realidade e as necessidades brasileiras?

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Lalo Leal - No Brasil, é imperiosa a necessidade de uma televisão pública nacional forte, capaz de competir em pé de igualdade com as emissoras comerciais. Infelizmente, adotamos aqui o modelo de exploração privada da radiodifusão desde o seu início, sem abrir espaços para alternativas. Isso fez com que a população brasileira ficasse refém de um modelo único, cuja finalidade primordial é a realização de lucros para os seus controladores.

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Descartou-se a ideia da prestação de um serviço de radiodifusão voltado para a ampliação do conhecimento, do incentivo ao espírito crítico e da ousadia na criação de formatos e conteúdos audiovisuais, entre outras características inerentes ao modelo público de rádio e TV.

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No caso específico da televisão, é importante que ela, ao prestar esse tipo de serviço, crie um novo público capaz de exigir também das emissoras comerciais produções de melhor qualidade. Com isso, a TV pública não só cumpriria a sua missão específica, como também contribuiria para a melhoria de todo o conjunto da televisão brasileira.

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e-Fórum - Qual seria o papel do Estado/governo na TV pública que o senhor idealiza?

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Lalo Leal - Ao Estado, acima dos governos, cabe a tutela institucional desses empreendimentos, na medida em que são eles os detentores das respectivas titularidades. Cabe, igualmente, impulsionar essas iniciativas oferecendo as condições institucionais e materiais básicas para o funcionamento desse tipo de emissora.

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Assim como devem alocar recursos para a saúde, a educação e a cultura, os governos têm também a obrigação de investir na televisão pública. Ainda mais no Brasil, onde ela é, para a maioria absoluta da população, a única fonte de informação e de entretenimento. Nesse sentido, a TV Pública torna-se peça importante no aprimoramento da democracia, na medida em que pode oferecer visões de mundo além daquelas determinadas pelo mercado.

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Quanto ao controle, a presença dos governos nos conselhos gestores é importante na medida em que os titulares dos cargos executivos têm o respaldo da sociedade obtido pelo voto. Mas para dar conta da ampla diversidade cultural existente nos pais, é igualmente importante a presença nos conselhos de representantes da sociedade, indicados por ela, em processos abertos e democráticos.

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e-Fórum - Quem deve financiar uma TV pública (além do Estado) e qual seria o mecanismo adequado? Ele incluiria a veiculação de anúncios pagos?

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Lalo Leal - O modelo ideal é o do financiamento autônomo das emissoras públicas, capaz de torná-las independentes tanto do Estado como da publicidade, como ocorre em alguns países europeus onde as emissoras são mantidas exclusivamente pelas taxas pagas pelos telespectadores.

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No caso brasileiro, acredito que não exista cultura nem condições materiais objetivas para que grande parte da população possa assumir mais esse encargo. Dessa forma, o ideal seria a existência de uma cesta de fontes de financiamento capaz de evitar a dependência excessiva da emissora em relação a apenas uma delas.

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Sem dúvida, caberia ao Estado a fatia maior, mas a ela poderiam ser acrescentados recursos de doações e de apoios culturais a programas e programações, por exemplo. Mas propaganda, de forma alguma, descaracteriza a linguagem da emissora e a coloca no mesmo plano das empresas comerciais de comunicação ao passar a disputar, com elas, o mercado publicitário, com o inevitável rebaixamento da qualidade da programação. Quando isso ocorre, o departamento de marketing passa a ter mais poder do que os setores de produção da emissora, impondo critérios de mercado em detrimento da prestação de um serviço público.

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e-Fórum - Trata-se de criar uma nova rede de TVs ou de tentar transformar a rede atual, controlada pelo Estado?

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Lalo Leal - Acredito que, no plano nacional, a TV Brasil está se constituindo na espinha dorsal da nova rede. Falta ainda a universalização do seu sinal para que a programação por ela produzida possa chegar, com alta qualidade técnica, a qualquer parte do país.

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Além disso, diante das dimensões territoriais brasileiras e da sua diversidade cultural, o ideal seria que houvesse, além de um canal nacional, canais públicos regionais e locais. E mais ainda, que pelo menos a emissora nacional pudesse emitir, no mínimo, três programações diferenciadas por três canais independentes: um apenas com programação para crianças, outro exclusivamente de notícias e um generalista para todos os gostos. Por que não? Tecnologia, recursos humanos e financeiros existem, resta acioná-los.

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e-Fórum - A TV Cultura de SP, referência no Brasil, enfrenta grave crise. Estamos perdendo um modelo de TV pública no país?

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Lalo Leal - Crise na TV Cultura de São Paulo não é novidade. Em meados da década de 1980, publiquei um livro (Atrás das Câmeras - Relações entre Cultura, Estado e Televisão. Ed. Summus, SP) sobre essa emissora onde analisava as crises ocorridas desde a sua inauguração, em 1968. De lá para cá, nada mudou.

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Apesar de ser mantida por uma fundação de direito privado, portanto imune à intervenção estatal, a TV Cultura vive sempre sob pressão dos governos de turno do Estado de São Paulo. Ainda que formalmente autônomo, o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta é muito submisso às imposições dos governos do Estado e muito distante da sociedade. No entanto, não acredito que o modelo esteja se perdendo.

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Na minha opinião, ele pode ser mantido e aprimorado. Começando, por exemplo, com a ampla divulgação dos nomes e dos contatos de todos os conselheiros da Fundação Padre Anchieta e das suas disponibilidades de horários para o atendimento do público. Afinal, eles não são os representantes da sociedade? Para exercer essa tarefa, o requisito número um é ouvir os seus representados.

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e-Fórum - Qual seria o tipo de programação ideal para uma TV pública? Deveria abdicar de transmitir novelas, por exemplo?

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Lalo Leal - Não. O entretenimento deve ser um dos pilares da programação de uma TV pública e nele a dramaturgia deve ter um papel central. Por que não levar ao ar séries teatrais baseadas em clássicos da literatura universal contando com os recursos cenográficos e técnicos consagrados pelas novelas?

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A programação deve ser atraente, construtiva, de bom nível, que dê conta de toda a riqueza cultural produzida no país. Sem obsessão por altas audiências, mas também sem desprezá-las. Buscando atender aos mais variados gostos do público, dentro de padrões éticos e estéticos elevados. "O serviço público de rádio e televisão deve tornar o popular respeitável e o que é respeitável popular", resumia Alasdair Milne, diretor geral da BBC nos anos 1980.
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Para deixar tudo isso mais claro, dou exemplos de como seria parte da programação de uma rede pública. Deve, por exemplo, resgatar os programas musicais de qualidade, exibindo-os no horário nobre, na faixa das 20h, concorrendo diretamente com as novelas e os telejornais das emissoras comerciais. Aliás, a música já foi, em outras épocas, o carro-chefe das programações das grandes emissoras brasileiras. Hoje ele é apêndice dos interesses das gravadoras.

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No domingo à tarde, por exemplo, quando o público brasileiro está acostumado a ver programas de auditório – sempre os mesmos, a mesma coisa - é possível fazer um programa agradável, estimulante, sem cair na baixaria. A TV Bandeirantes colocou no ar o programa 'É tudo improviso', feito por um grupo de teatro que trabalha com humor de alto nível. Esse grupo numa TV pública, num domingo à tarde, estaria conquistando telespectadores desses programas de variedades para um outro nível de produção artística e até levando gente ao teatro e à música mais elaborada.
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Outro exemplo seria o da rede tendo como missão dar ao público um cinema de bom nível, nacional e estrangeiro, exibido sem intervalos. Algo que alguns canais a cabo já fazem para poucos privilegiados (menos de 10% da população brasileira). Para não falar da necessidade de uma programação infantil sedutora, com conteúdo educativo, mas sem loiras, prêmios ou merchandisings. E um jornalismo crítico e independente, capaz de oferecer ao telespectador informações que o habilite a tomar, ele próprio, suas decisões. O dono da verdade deve ser o público e não a emissora.
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O Brasil, infelizmente, é uma das poucas grandes democracias do mundo que não exibe debates políticos na TV como rotina. Eles surgem, como raios em céu azul, às vésperas das eleições, completamente engessados. Dá inveja ver, por exemplo, os programas de debates políticos regulares na TV argentina ou os debates sobre os temas do dia, toda a noite, na TV britânica.
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Se um dia a TV pública brasileira atingir essas metas, estaremos dando um salto de qualidade nunca visto em nossa televisão. Aproximando-a do modelo britânico, reconhecido como o melhor do mundo. E que tem como um dos seus objetivos "despertar o público para ideias e gostos culturais menos familiares, ampliando mentes e horizontes, elevar a qualidade de vida do telespectador, em vez de meramente puxá-lo para o rotineiro com programas concebidos como uma forma de capacitar o telespectador para uma enriquecedora experiência de vida. Parece sonho não? Mas sem ele, estaremos condenados à mediocridade.
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e-Fórum - Quais são as perspectivas para a TV pública brasileira, considerando as mudanças que ocorrerão nos governos federal e estaduais?
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Lalo Leal - O ideal seria que não houvesse mudança nenhuma. Que as emissoras seguissem suas vidas independentemente dos humores dos governantes do momento. Sei que isso é difícil por aqui. A ameaça, já superada, de uma vitória da oposição a nível nacional colocaria em risco o projeto da TV Brasil. Daí a necessidade da criação de mecanismos de controle e financiamento estáveis para todas as TVs públicas como forma de blindá-las contra qualquer tentativa de retrocesso.

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Laurindo Leal Filho - Cientista social, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e pós-doutor pelo Goldsmiths College da Universidade de Londres. Publicou os livros "Atrás das Câmeras, relações entre Estado, Cultura e Televisão". "A melhor TV do mundo, o modelo britânico de televisão", "A TV sob controle, a resposta da sociedade ao poder da televisão" e "Vozes de Londres, memórias brasileiras da BBC", além de artigos sobre cultura e comunicação, com ênfase na televisão, em publicações científicas e de divulgação.

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Professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP, é ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação e apresentador do programa Ver TV, exibido pela TV Brasil e pela TV Câmara. Atuando, principalmente, nos temas: política, políticas públicas de comunicação, televisão, televisão pública, rádio e jornalismo. Foi Secretário de Esportes, Lazer e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989/1993).

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domingo, 15 de agosto de 2010

Legado da Conferência de Comunicação será perdido se propostas não se tornarem políticas públicas

Título original: Sem dar consequência, vamos perder o legado da Confecom

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Em entrevista ao FNDC, o professor e jornalista César Bolãno defende a criação de um Conselho Nacional de Comunicação deliberativo e autônomo e de um marco legal abrangente como políticas públicas essenciais para se avançar na democratização do setor no Brasil. Leia a íntegra da entrevista.

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Entrevista originalmente publicada no site do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação

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Ana Rita Marini
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Ao cabo de oito anos, o governo do presidente Lula deixou muito a desejar no que se refere às políticas públicas de comunicação para o Brasil. Se o Parlamento não der consequência às demandas da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), será como se ela nem tivesse acontecido.

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De acordo com o professor e pesquisador César Ricardo Siqueira Bolaño*, autor do livro "Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil?", para avançar em políticas democráticas no setor, alguns dos principais elementos pelos quais se deve lutar hoje são a construção de um novo marco regulatório abrangente, que ultrapasse a questão dos ajustes legais por tecnologia; e a criação de um Conselho Nacional deliberativo e autônomo. Bolaño é o entrevistado exclusivo desta edição do e-Fórum. Leia a seguir.

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E-Fórum - Que regras determinam, atualmente, as políticas públicas de comunicação no país?

Bolaño - Tenho um livro publicado ("Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil?" Ed. Paulus, SP/2007) no qual discuto justamente qual é o sentido dessas políticas. E o que se observa é que as políticas de comunicação no Brasil têm uma regra, basicamente, que é a de atender ao interesse dos radiodifusores. O resto é secundário. Isso é a norma geral que se vê no estudo da história dessas políticas no país até muito recentemente.

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E-Fórum - Legalmente, como essas regras estão estruturadas?

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Bolaño - No Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, e na Lei Geral de Telecomunicações – LGT, de 1997, que separou a radiodifusão das telecomunicações. Desta forma, a radiodifusão continua sob o controle da antiga lei e o resto, as telecomunicações, inclusive a TV a Cabo e as outras formas de televisão pagas, estão de acordo com a nova lei e mais ou menos vinculadas ao setor de telecomunicações. No caso da TV a cabo, especificamente, existe uma legislação própria, de 1995 (Lei 8.977/95).

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E-Fórum - Isso resume as regras para a comunicação do país?

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Bolaño - Esses são os marcos gerais das políticas de comunicação, mais a Lei do Cabo, que é anterior à LGT, mas acaba se enquadrando na mesma, inclusive tendo como órgão regulador a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

A LGT foi elaborada no governo Fernando Henrique Cardoso, preservando o setor de radiodifusão sob a responsabilidade do Ministério das Comunicações, que atende basicamente os interesses dos radiodifusores. Então, toda a discussão sobre democratização das comunicações no Brasil será remetida para uma ou para outra [lei].

No Congresso Nacional, circulam alguns projetos. O PL 29 (atual PLC 116, que tramita no Senado, que regulamenta a entrada das empresas de telecomunicações na prestação de serviços audiovisuais) é o que mais se comenta. Mas sempre circulam propostas como a da Jandira Feghali (ex-deputada federal pelo PCdoB do RJ, autora do projeto de lei que prevê regionalizar a programação artística, cultural e jornalística das emissoras de rádio e TV, o PL 256/91), da regionalização, mas isso não chega a se materializar em mudança efetiva das políticas de comunicação no Brasil. Pelo menos até hoje não chegou.

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E-Fórum - Um novo marco regulatório poderia contemplar as políticas de comunicação frente aos avanços tecnológicos e garantir a função social da mídia?

Bolaño - Sim. Exatamente. Porque vivemos num mundo em que a tecnologia se desenvolve muito rapidamente e tudo vai sendo resolvido, na legislação brasileira, no caso a caso. Isso torna o processo bastante confuso.

Nós precisaríamos de um marco legal renovado e geral para o conjunto do setor, porque sempre que surge uma inovação tecnológica na área, há uma pequena mudança na lei ou há toda uma discussão, como no caso do PL 29, da convergência. Mas não se muda o arcabouço da legislação do setor de comunicação no Brasil. Não é pela tecnologia que isso vai se resolver.

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Acho até que na Constituição Federal brasileira tem mecanismos que poderiam ser regulamentados. A partir da própria Constituição seria possível criar um marco regulatório adequado. Penso que seria possível regulamentar a partir dali, porque a CF tem a base, só que não existe legislação para que a norma seja efetivamente cumprida.

E-Fórum - Quais são os maiores conflitos, hoje, no debate público da comunicação no país? E para a democratização da comunicação?

Bolaño - Para mim, a grande questão é que no Brasil, hoje, você pode dividir os interesses do setor em três grandes grupos: Conservador (defende os interesses da radiodifusão), Progressista (defende os interesses dos movimentos pela democratização da comunicação) e Liberal (defende os interesses das telecomunicações). Esses setores não são igualmente contemplados no processo de produção legislativa na área de comunicação no Brasil.

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O que precisaríamos é de um sistema mais equilibrado, em que o setor progressista também fosse contemplado, porque ele tradicionalmente defende aspectos importantes da legislação ligados à democratização da comunicação no Brasil. Os outros setores têm interesses mais corporativistas e são os que dominam.

Na questão do PL 29 (hoje PLC 116), por exemplo, são esses dois setores (Conservador e Liberal) que acabam encontrando soluções de compromisso. Porque se temos um setor de radiodifusão muito poderoso do ponto de vista da capacidade de lobby, temos um setor de telecomunicações muito mais poderoso ainda economicamente. Tudo vira uma disputa de mercado e são eles que darão a solução.

O setor que fica prejudicado nesse processo é o que representa a sociedade civil, que defende os interesses sociais do país. Então, acho que esse é o foco que deveria ser adotado por um governo democrático e popular como o atual, mas infelizmente a gente sabe que o que o Governo Lula fez no campo da Comunicação foi bastante insuficiente.

E-Fórum - Mesmo e apesar da Conferência Nacional de Comunicação?

Bolaño - Apesar da Conferência. Eu fui delegado, participei, mas não tenho mais notícias. Vai fazer um ano que acabou.

E-Fórum - Mas a Confecom propiciou o debate sobre políticas públicas de comunicação no Brasil. Como dar consequência ao acúmulo gerado pelo evento?

Bolaño - O debate no Brasil sempre ocorreu. É uma característica brasileira. Mas depois, nada acontece. A Conferência foi importante, porque se criou uma esfera pública em torno do assunto, foi chamada pelo governo. Legitimou o debate e inclusive colocou os três setores presentes – empresarial, sociedade civil e governo. Apesar de que os representantes mais importantes do empresariado, oligopolistas (as grandes redes de TV), não participaram.

O problema é que isso não teve uma consequência legislativa posterior. O Congresso Nacional não está dando consequência àquilo que foi debatido pela sociedade civil dentro da Conferência. E já vai fazer um ano.

Nos oito anos do governo Lula, dá para dizer que na área de políticas de comunicação nada avançou. É diferente da política cultural, por exemplo, onde aconteceram coisas. Na comunicação, houve a criação da TV pública (EBC, TV Brasil), interessante, mas que foi apenas um rearranjo. De fato, a TV pública no Brasil continua com o mesmo espaço que tinha antes, em termos de audiência e de produção efetiva. Então, a mudança estrutural, a mudança de hegemonia no setor de comunicação não ocorreu.

Temos que esperar agora que no próximo governo isso venha acontecer. Essa é a grande dívida do governo Lula, eu acho. Ele avançou numa série de coisas importantes no Brasil, mas deixou a desejar no setor da comunicação.

E-Fórum - No caso da TV pública, o que o senhor acha que falta para ela deslanchar?

Bolaño - Não tenho uma avaliação minuciosa dessa questão. De modo geral, não houve mudança significativa no panorama da televisão brasileira com isso. Se havia no Brasil as TVs públicas estaduais, hoje tem um sistema reformado, mas com o mesmo tipo de audiência e programação. Não houve mudança mais profunda.

Acho que para ter uma TV pública como a que tem na Europa, por exemplo, precisaria haver três canais. A Europa tem uma TV pública que disputa espaço. Na França, onde a primeira cadeia de TV foi privatizada, é a cadeia pública, hoje, que tem a liderança. Lá, foi privatizada a cadeia pública de maior audiência e a cadeia pública remanescente acabou assumindo a liderança em pouco tempo. Isso não se discute, isso é banal na estrutura da televisão europeia, por exemplo.

No Brasil a TV pública ainda fica na discussão filosófica. A TV pública deve transmitir novela? Acho que deve. E deve produzir novela de qualidade, porque faz parte do padrão cultural do povo brasileiro. Agora, com um canal só, fica difícil. Então, acho que essa preocupação não existe ainda. O que houve foi um rearranjo, até interessante do ponto de vista institucional, porque precisamos de um canal centralizado e isso foi feito. Mas não mudou o panorama da TV brasileira. Se a televisão brasileira está mudando é por força de outras questões que atuam no nível do mercado e não por força de uma TV pública diferente.

E-Fórum - Na sua opinião, um Conselho Nacional de Comunicação com caráter deliberativo deve fazer parte de um conjunto de políticas públicas para o setor?

Bolaño - Eu apoio a ideia do Conselho de Comunicação Social desde o início, na Constituinte (1988). Acho que foi uma conquista, mas que aconteceu muito tempo depois, de forma limitada e por um curto espaço de tempo. Acabou até cumprindo a proposta de debate, que se processou muito em função, inclusive, da atuação de algumas pessoas, do Daniel Herz, particularmente, que teve papel fundamental neste processo, mas em seguida acabou.

O que nós precisamos é de um verdadeiro processo de democratização da comunicação. Um conselho com as características (deliberativo, autônomo) propostas originalmente pelo setor progressista é um dos elementos importantes pelos quais se deve lutar ainda hoje.

Isso tem que ser realizado através do debate político e da hegemonia. Nossa estrutura hegemônica até hoje não permitiu que se avançasse muito nesse processo.

E-Fórum - Na busca de construir políticas de comunicação para o país, então, qual seria o próximo passo?

Bolaño - Acho que a grande questão é o novo marco regulatório, recuperando os debates da Conferência. O debate foi realizado, os documentos existem. Agora é dar consequência a isto, porque se mobilizou recurso público, inteligência brasileira. Um monte de gente participou, se chegou a algumas conclusões e esse material tem que ser trabalhado. O movimento deveria estar focado nisso.

É preciso que o novo governo - porque este já não poderá fazer, evidentemente - assuma isso. Que os candidatos assumam esse compromisso e que o próximo governo faça o que não foi feito até agora. Se o novo governo fizer, a gente até vai poder dizer que o governo Lula fez uma coisa importante na Comunicação, que foi a Conferência. Se não acontecer nada, é porque de fato não houve nada. Acho até que o governo Lula e quem o apoiou deveria assumir esse compromisso, mesmo se estiver na oposição, de ajudar a implementar uma nova política de comunicação no Brasil.


*César Ricardo Siqueira Bolaño é jornalista, autor, entre outras obras, do livro "Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? (Ed. Paulus, SP/2007). Doutor em Economia, professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS), do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFS e do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília (UnB). Foi o primeiro presidente da União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e da Cultura (ULEPICC).
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